Liturgia Diária
DIA 15 – TERÇA-FEIRA
SEMANA SANTA
(roxo, pref. da paixão II – ofício próprio)
Não me entregueis, Senhor, às mãos dos que me perseguem, pois contra mim se levantaram falsas testemunhas, mas volta-se contra eles a sua iniquidade (Sl 26,12).
Desde o princípio invisível da existência, a centelha do ser é chamada à luz. Cada alma, forjada no mistério do primeiro gesto de liberdade, carrega em si o selo da escolha — não imposta, mas intuída na origem. Ser é já missão: irradiar sentido, despertar consciências, conservar-se íntegro diante das sombras. O verdadeiro perigo não é a escuridão externa, mas a renúncia interior à luz que nos habita. Trair essa luz é abdicar do dom mais sagrado: a responsabilidade de existir como expressão do Bem. Que a vigília constante preserve a fidelidade ao Amor que nos fundamenta e transcende.
Evangelium secundum Ioannem (João 13,21-33.36-38)
21 Cum haec dixisset Iesus, turbatus est spiritu, et protestatus est, et dixit: Amen, amen dico vobis, quia unus ex vobis tradet me.
Depois de dizer isso, Jesus perturbou-se em espírito, deu testemunho e disse: Em verdade, em verdade vos digo, um de vós me trairá.
22 Aspiciebant ergo ad invicem discipuli, dubitantes de quo diceret.
Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saber de quem ele falava.
23 Erat ergo recumbens unus ex discipulis eius in sinu Iesu, quem diligebat Iesus.
Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus.
24 Innuit ergo huic Simon Petrus, et dixit ei: Quis est, de quo dicit?
Simão Pedro fez sinal para ele e disse: Quem é aquele de quem ele fala?
25 Itaque cum recubuisset ille supra pectus Iesu, dicit ei: Domine, quis est?
Então, recostando-se no peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é?
26 Respondit Iesus: Ille est cui ego intinctum panem porrexero. Et cum intinxisset panem, dedit Iudae Simonis Iscariotae.
Jesus respondeu: É aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado. E, tendo molhado o pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes.
27 Et post buccellam, introivit in eum Satanas. Et dixit ei Iesus: Quod facis, fac citius.
Depois do pedaço, Satanás entrou nele. Jesus então lhe disse: O que fazes, faze-o depressa.
28 Hoc autem nemo scivit discumbentium ad quid dixerit ei.
Mas nenhum dos que estavam à mesa entendeu por que ele lhe dissera isso.
29 Quidam enim putabant, quia loculos habebat Iudas, quod dixisset ei Iesus: Eme ea quae opus sunt nobis ad diem festum: aut ut egenis aliquid daret.
Alguns pensavam, porque Judas tinha a bolsa, que Jesus lhe dissera: Compra o que nos é necessário para a festa, ou que desse algo aos pobres.
30 Cum ergo accepisset ille buccellam, exivit continuo. Erat autem nox.
Assim, tendo recebido o pedaço, ele saiu imediatamente. E era noite.
31 Cum ergo exisset, dixit Iesus: Nunc clarificatus est Filius hominis, et Deus clarificatus est in eo.
Quando ele saiu, Jesus disse: Agora foi glorificado o Filho do homem, e Deus foi glorificado nele.
32 Si Deus clarificatus est in eo, et Deus clarificabit eum in semetipso: et continuo clarificabit eum.
Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e logo o glorificará.
33 Filioli, adhuc modicum vobiscum sum. Quaeretis me, et sicut dixi Iudaeis: Quo ego vado, vos non potestis venire: et vobis dico modo.
Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco. Vós me procurareis; e como disse aos judeus: Para onde eu vou, vós não podeis ir, agora também vos digo a vós.
36 Dicit ei Simon Petrus: Domine, quo vadis? Respondit ei Iesus: Quo vado non potes me modo sequi, sequeris autem postea.
Disse-lhe Simão Pedro: Senhor, para onde vais? Respondeu-lhe Jesus: Para onde eu vou, não podes seguir-me agora, mas seguirás depois.
37 Dicit ei Petrus: Quare non possum te sequi modo? Animam meam pro te ponam.
Disse-lhe Pedro: Por que não posso seguir-te agora? Darei a minha vida por ti.
38 Respondit ei Iesus: Animam tuam pro me ponis? Amen, amen dico tibi: Non cantabit gallus, donec ter me neges.
Respondeu-lhe Jesus: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo antes que me negues três vezes.
Reflexão:
A jornada de cada ser é feita de decisões que revelam a consciência desperta. Jesus nos ensina que não basta desejar o bem; é necessário agir com inteireza mesmo quando o caminho se obscurece. O gesto livre ganha sentido quando brota da verdade interior, não da promessa impetuosa. A fidelidade nasce do autoconhecimento. Quem reconhece suas sombras caminha com mais firmeza na direção da luz. O fracasso não é fim, mas ocasião para reconstruir. A transformação só é possível onde há escolha consciente. E a plenitude começa quando se escolhe o bem com liberdade e responsabilidade.
Frase mais importante:
"Et post buccellam introivit in eum Satanas. Et dicit ei Iesus: Quod facis, fac citius."
E após o bocado, entrou nele Satanás. E Jesus lhe disse: O que vais fazer, faze-o depressa." (Jo 13:27)
Este versículo carrega um peso simbólico e espiritual profundo:
-
Marca o momento em que Judas se entrega plenamente ao mal.
-
Revela a consciência e soberania de Jesus diante do que está por vir.
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Inaugura o mistério da entrega voluntária do Cristo para que se cumpra o plano de redenção.
HOMILIA
"O movimento da Luz que se entrega ao próprio sentido"
No coração do relato sagrado segundo João (13,21-33.36-38), encontramos um momento de silêncio que não é ausência, mas transbordamento. Uma presença que se dilui para ser mais real. Uma palavra que, ao anunciar a traição, não denuncia apenas um homem, mas revela o ponto em que a liberdade toca a eternidade.
"Et post buccellam introivit in eum Satanas. Et dicit ei Iesus: Quod facis, fac citius." (Jo 13,27)
Depois do pão, entrou nele o opositor. E Jesus, com olhos sem resistência, disse: "O que fazes, faze-o depressa."
Aqui, tudo vibra. A entrega não é derrota, é ato de direção plena. Aquele que é a Fonte não tenta impedir o fluxo, mas o assume. Pois o Amor não impõe, não bloqueia, não se protege. Ele se revela oferecendo-se à escolha do outro, mesmo quando o outro se torna sombra.
Jesus, ao mergulhar na noite do gesto de Judas, ilumina o que há de mais secreto no destino da consciência: a liberdade de fazer o que se acredita ser verdadeiro, ainda que isso revele o abismo. Não é Jesus que caminha para a morte. É a morte que caminha para o seu limite diante d’Aquele que ama até o fim.
Pedro, por sua vez, quer proteger, quer garantir sua lealdade. Mas o Cristo, conhecedor do movimento oculto das intenções, diz: “Non cantabit gallus, donec ter me neges.” — “Não cantará o galo antes que me negues três vezes.” (Jo 13,38)
Não por acusação, mas por compaixão. Pois o que se revela aqui é o percurso necessário da alma que, ao negar, reconhece. Ao cair, aprende. Ao dispersar-se, retorna.
Não há violência, apenas caminho. Não há erro absoluto, apenas movimento que, mais cedo ou mais tarde, se volta à Origem.
Neste Evangelho, há um silêncio maior do que a ação. Uma sabedoria que se curva diante da liberdade, mesmo sabendo do seu custo. A luz não conquista o mundo pela força, mas pela oferta de si. Aquele que é verdadeiro não prende, apenas mostra. Aquele que é pleno não exige, apenas atravessa.
Na ceia, o pão é entregue a Judas, como outrora foi multiplicado aos que tinham fome. Mas agora o pão é dado àquele que se perdeu. Pois não há abismo onde a entrega não vá.
E assim, aquele que é a Luz passa pela sombra, para que a sombra, um dia, se veja iluminada por dentro.
EXPLICAÇÃO TEOLÓGICA
Explicação teológica profunda de João 13,27
"E após o bocado, entrou nele Satanás. E Jesus lhe disse: O que vais fazer, faze-o depressa."
Este versículo é um dos mais densos e misteriosos de todo o Evangelho segundo João. Nele convergem a liberdade humana, a revelação do mal, e a soberania do Cristo. Aprofundemo-nos em três níveis de leitura: ontológico, espiritual e cristológico.
1. Nível Ontológico: o ponto em que a liberdade toca a escuridão
"E após o bocado..."
O gesto de Jesus de entregar a Judas o bocado é mais do que um simples ato ritual. No contexto hebraico da ceia, oferecer o bocado a alguém era sinal de deferência, honra e amizade íntima. Jesus oferece a Judas, mesmo diante da iminente traição, um último sinal de amor, de abertura, de comunhão possível.
O "bocado" é, portanto, um símbolo da última oportunidade de escolha livre e consciente. Aquele que é a Verdade oferece-se ao coração dividido.
"...entrou nele Satanás."
Aqui, não se trata de uma possessão forçada, mas da plena adesão de Judas à negação do Logos, da ordem divina. O termo "Satanás" representa a ruptura, o adversário, aquele que fragmenta o movimento de unidade. O que entra em Judas é o resultado de sua decisão: a total recusa da verdade revelada, e a entrega de sua liberdade ao impulso contrário à plenitude.
Neste instante, Judas deixa de ser apenas discípulo confuso e se torna instrumento da desintegração. A sua liberdade, embora respeitada, é usada para estabelecer ruptura, não comunhão.
2. Nível Espiritual: o silêncio da luz diante da sombra
"E Jesus lhe disse: O que vais fazer, faze-o depressa."
Esta frase não é um comando, mas uma permissão. Não é cumplicidade, mas soberania. O Cristo, plenamente consciente do que se desenrola, não impede Judas. Ele o reconhece como um agente necessário dentro do mistério da redenção, mas sem jamais aprovar sua escolha.
Jesus, aqui, está no ápice da liberdade divina: Ele se oferece, não resiste, permite que a liberdade humana – mesmo quando mal orientada – siga o seu curso. Pois é justamente nesse curso, misteriosamente, que o desígnio da salvação será revelado.
Ao dizer "faze-o depressa", Jesus também mostra que não há hesitação no Amor. Ele não teme a cruz, pois vê além dela. Não se prende ao tempo do medo, mas ao tempo da fidelidade. O "depressa" é a urgência do Amor que precisa consumar-se, ainda que pelo escândalo da entrega e da traição.
3. Nível Cristológico: a luz que não se opõe à noite, mas a atravessa
Este versículo inaugura, na teologia joanina, o movimento irreversível da glorificação de Cristo. A traição de Judas não é o início da derrota, mas o ponto de entrada no mistério da vitória.
Jesus não é surpreendido, enganado ou traído num sentido passivo. Ele conhece o coração de todos (cf. Jo 2,25) e, ao permitir que Judas atue, Ele transforma o mal em ocasião para a revelação suprema do Amor: a Cruz.
O mal age com liberdade, mas Deus o transcende. A Cruz, gerada pela traição, torna-se o trono da glorificação. Judas sai da luz, e a Luz entra na noite – não para apagar-se, mas para redimir a própria escuridão.
Conclusão
João 13,27 não é apenas um registro de um momento histórico, mas o espelho da tensão entre liberdade e graça, entre luz e escuridão, entre o amor que se oferece e a recusa que se fecha.
Jesus não evita a dor, pois Ele é o Caminho. E esse Caminho passa por permitir que até a liberdade corrompida encontre lugar dentro do Mistério de Deus.
Assim, este versículo nos convida a reconhecer:
– que a liberdade sem verdade pode tornar-se instrumento da ruptura;
– que o amor autêntico respeita até a recusa;
– e que Deus, em Sua plenitude, redime até aquilo que parecia irreversível.
O bocado dado é a última chance de comunhão. A recusa, o início da noite. E a noite... é o portal da Aurora.
Se desejar, posso complementar com uma oração contemplativa baseada neste versículo.
Leia também: LITURGIA DA PALAVRA
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